Denis Lerrer Rosenfield
O Estado de S. Paulo
O Estado de S. Paulo
A propósito de meu último artigo, Liberdade e doença, recebi várias manifestações insistindo na importância da liberdade de escolha, da responsabilização individual e contra a usurpação dos direitos individuais em nome do politicamente correto. A lista do politicamente correto é longa, sendo conduzida tanto pelo governo federal quanto por governos estaduais, não havendo aqui nenhum monopólio partidário.
O Brasil tem vivido nos últimos anos uma invasão do politicamente correto. Tal invasão vem acompanhada de uma série de medidas legais, sejam leis propriamente ditas, sejam atos administrativos, como decretos, resoluções, portarias e instruções normativas, que coíbem, cada vez mais, a liberdade de escolha. O politicamente correto apresenta-se, então, como se fosse, moralmente falando, uma forma do bem que estaria enfrentando o mal, no caso, o mau comportamento. Tivemos, assim, medidas contra o álcool e o fumo apresentadas como se fossem a expressão mesma da virtude.
Sua ampliação já é cogitada para vários alimentos considerados daninhos ao organismo, como certas formas de gordura, podendo atingir desde chocolates e doces em geral até sorvetes, passando por carnes.
Também já tivemos resoluções que dispõem como indivíduos podem comprar medicamentos que não necessitam de receituário médico: só atrás do balcão, mediante atendentes, e não na frente, segundo o critério de escolha de cada um. Mais recentemente, tivemos medidas que obrigam o uso de um novo tipo de receituário médico para a compra de antibióticos ou, na esfera profissional, o registro impresso do ponto eletrônico para empresas, como se patrões e empregados não fossem suficientemente responsáveis e maiores de idade para estabelecerem entre si, livremente, acordos de trabalho. Até a ideia de uma lei visando a disciplinar a relação entre pais e filhos, a chamada lei da palmada, exibe essa invasão estatal na esfera propriamente familiar. Um leitor me alertou ainda sobre o uso doravante obrigatório de tomadas brasileiras, como se tomadas de outros países não pudessem ser escolhidas livremente por seus usuários.
Observe-se que o Estado passa a se ocupar das mais diferentes esferas da vida individual, familiar e empresarial, determinando, segundo ele, o que é melhor para cada um, como se tivesse o saber da "virtude" em sua cruzada contra o "vício", ou do bom uso de determinados instrumentos em detrimento de outros. Começa a imiscuir-se, literalmente, em tudo. Trata-se do dito cuidado do corpo, sob a forma da "saúde", da "boa" educação em lugar da "má", da "boa" relação trabalhista em lugar da "má", da "boa" família em lugar da "má", e até mesmo da "boa" tomada em lugar da "má". Não convém observar essas medidas apenas individualmente, porque perdemos, assim, a visão do conjunto.
Individualmente, alguns poderiam até estar inclinados a aceitar uma ou outra dessas medidas, mas o problema não reside aí, porque o seu significado só nasce de sua visão enquanto políticas públicas feitas com o intuito de restringir as liberdades individuais.
Note-se que se trata de políticas públicas que visam a cuidar do corpo dos cidadãos, das relações entre empregadores e empregados e mesmo do uso de certos equipamentos. É a relação da pessoa consigo mesma, com os outros, em geral, e do tipo profissional. Acontece que esse cuidado com o corpo individual começa a passar para o corpo coletivo, o das relações interpessoais e profissionais, alcançando, inclusive, a alma dos indivíduos. Estes passam a ser ensinados como se devem comportar, como obedecer, como abandonar o senso crítico e como se desresponsabilizar.
O processo passa, então, para as mentalidades propriamente ditas, para a "alma", cujo controle se faz, hoje, pela formação e pelo domínio da opinião pública. A omissão individual começa a ser compensada por medidas coletivas que, cada uma individualmente, se tornam progressivamente aceitáveis, adotando a forma de um conjunto que cerceia os direitos individuais. Logo, não é estranho a esse processo que medidas sejam igualmente tomadas com o propósito de cercear a liberdade de imprensa e o uso da publicidade. Consoante com essa visão, iniciativas são propostas de controle de conteúdo da mídia, visando a coibir e multar notícias e ideias que incitem os "maus" comportamentos. Evidentemente, a dita nova legislação se colocaria do lado do "bom" comportamento, do "bom" cuidado da alma e do corpo, contra os que se colocam na posição contrária. O controle dos meios de comunicação é um meio de controle das mentalidades, da formação da opinião pública e da "alma".
No linguajar de Locke, no século 17, "nenhum homem pode ser forçado a ser rico ou saudável contra a sua vontade". Não é essa, nem deveria ser, a função da lei e do Estado. Os homens devem ser entregues à sua própria consciência, o que significa dizer à sua própria liberdade, à sua capacidade racional de discernimento. Nenhuma instância se pode colocar nessa posição, salvo se seu objetivo for aniquilar o livre-arbítrio. Os cidadãos, para terem seus direitos assegurados, devem atentar para essas formas de controle, que, sob o manto do politicamente correto, ameaçam esses mesmos direitos. O excesso de regulamentação é somente uma de suas faces. A outra é o surgimento de formas de autoritarismo que nascem no seio de Estados ditos democráticos, com a peculiaridade de se dizerem "democráticas".
O politicamente correto é uma expressão dessa face autocrática que se mascara moralmente, com o intuito de que o cidadão aceite tal imposição como se fosse, de certa maneira, "sua". A "moralidade" assumida pelo Estado procura criar entre os cidadãos a imagem - e a mensagem - de que essas proibições são saudáveis, são boas em si.
A democracia corre o perigo de ser minada por um "autoritarismo democrático".
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